A morte programada de células faz parte do processo evolutivo de todos os seres multicelulares. O “suicídio” celular é fundamental para o desenvolvimento e para a integridade dos organismos. Sua desregulação está associada a inúmeras patologias, tais como imunodeficiências, doenças autoimunes, distúrbios no desenvolvimento e até câncer.

Nas doenças neuro-degenerativas como Alzheimer e Parkinson, os processos de “suicídio” celular são hiperativos e patogênicos. Assim, se pudessem ser interrompidos, a velocidade de progressão das doenças diminuiria, bem como os seus sintomas.

“A morte é uma quimera porque, enquanto eu existo, ela não existe; e quando ela existe, eu já não existo”. Epicuro

Células decidem morrer?

Você já se perguntou por que cada dedo da mão tem um tamanho diferente? Por que as células do câncer crescem como uma massa sem formato definido? E por que a pele “descasca” depois de muito exposta ao sol?

A morte programada é geneticamente determinada e ocorre por uma série de reações moleculares. No desenvolvimento do embrião, controla o crescimento dos dedos das mãos e dos pés, o tempo para o fechamento do tubo neural, a seleção das conexões entre os neurônios, entre outros. Depois do nascimento, também controla as células do sangue, a renovação da mucosa do intestino e tem importante papel na resposta das células imunológicas na defesa contra a invasão de patógenos.

Estima-se que, sem a morte programada de células indesejadas, uma pessoa de 80 anos teria cerca de 2 toneladas de medula óssea e gânglios linfáticos e cerca de 16 quilômetros de intestinos!

Tipos de morte programada

Na célula, sua morte tem funções tanto fisiológicas quanto patológicas. O seu ciclo de vida pode variar de poucos dias a muitos anos, dependendo do tipo celular. Assim, a cada dia, bilhões de células morrem e são rapidamente removidas pelos fagócitos, células de defesa capazes de englobar e destruir as células que morreram.

Este mecanismo de “limpeza” ocorre facilmente em condições normais e com alta eficiência. Porém, pode ser rapidamente sobrecarregado se muitas células morrerem simultaneamente, como no caso de infecções, inflamações crônicas ou de trauma tecidual, como a pele muito exposta ao sol.

A morte súbita e desenfreada de inúmeras células libera substâncias que agem como sinalizadoras de dano. Deste modo, isto recruta mais células do sistema imunológico para reparar os estragos e enfrentar possíveis invasores.

São várias as formas de morte programada e as mais estudadas são a apoptose, a necroptose e a piroptose. Enquanto a necroptose e a piroptose são consideradas “barulhentas”, a apoptose é considerada silenciosa por quase não provocar o sistema imunológico.

Necroptose

A necroptose é forte e irreversível.

Uma vez ativada, desencadeia um processo de autodestruição celular, com liberação de substâncias pró-inflamatórias que sinalizam para o sistema imunológico. Por isso, é uma das respostas contra as infecções microbianas e também essencial para ativar o sistema de defesa contra tipos específicos de câncer.

Interessante saber que alguns vírus e bactérias desenvolveram ferramentas para prevenir a morte celular do hospedeiro e, assim escapar do sistema imunológico!

Ainda, a necroptose está envolvida no acidente vascular cerebral isquêmico, no infarto agudo do miocárdio e nos transplantes de órgãos. Também está relacionada às inflamações crônicas, como a doença pulmonar obstrutiva crônica, as doenças reumáticas e inflamatórias do intestino.

Piroptose

Considerada a reguladora master da inflamação, este é o tipo de morte programada que culmina na perda da integridade da membrana plasmática das células e é induzida pela ativação de sensores. Estes detectam uma variedade de substâncias liberadas por desregulação das células ou por micróbios durante infecções. Portanto, constituem forte defesa e evitam que a infecção se espalhe, já que alertam o sistema imunológico do perigo iminente.

Entretanto, uma ativação desbalanceada dos sensores sentinelas gera inflamação descontrolada, como no desenvolvimento dos quadros graves secundários a infecção pela covid-19. A mesma ativação desbalanceada ocorre nos quadros de Alzheimer e aterosclerose, com forte impacto na saúde mundial.

Interessante ressaltar que estudos recentes mostram a relação da dieta ocidental com o estímulo sobre estes sensores: esta dieta, se prolongada, provoca uma reprogramação dos precursores das células de defesa presentes na medula óssea, gerando inflamação mesmo após a mudança para uma dieta mais saudável.

Apoptose

A apoptose foi o primeiro tipo de morte celular programada descrita. Em 1972, o Professor John Kerr e seus colaboradores nomearam-na com esta palavra grega que significa “folhas que caem da árvore”. Exerce um papel importante no equilíbrios dos tecidos, contribui para a renovação celular, para o funcionamento adequado do sistema imunológico e para o desenvolvimento de embrião.

Durante a apoptose, a célula sofre alterações do seu tamanho, do seu volume e perde o contato com as células vizinhas. Ocorre a fragmentação celular, de suas organelas e do DNA.

A existência de sinais “encontre-me” e “devore-me” liberados durante a apoptose para recrutar fagócitos e, assim, promover a limpeza celular, é conhecida há muito tempo. No entanto, as substâncias liberadas pelas células apoptóticas exercem um efeito complexo que está começando a ser entendido. Deste modo, além de promover sua própria fagocitose, estas células diminuem o processo inflamatório e promovem reparo do tecido no seu entorno.

A morte programada: na saúde e na doença

Os tipos de morte programada são interligados e desempenham um importante papel no equilíbrio do organismo. Assim, vimos que sua desregulação pode levar a inúmeras doenças, como as autoimunes, neuro-degenerativas e até câncer.

Conhecer seus mecanismos é importante arma para o desenvolvimento de novos tratamentos e para trazer esperança a todos os pacientes que sofrem de doenças atualmente incuráveis.

“A esperança é o sonho do homem acordado” – Aristóteles

 

Referências:

  1. Hotchkiss RS, Strasser A, McDunn JE, Swanson PE. Cell death. N Engl J Med. 2009 Oct 15;361(16):1570-83. doi: 10.1056/NEJMra0901217. PMID: 19828534; PMCID: PMC3760419.
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