palavras em braille

As palavras nos dedos

“Quando uma pequena palavra cai das mãos de outra pessoa sobre as minhas, uma leve vibração dos dedos inicia a inteligência, a graça, a plenitude da minha vida. Eu sinto como se as mãos me modelassem, assim como a minha alma” Helen Keller

A maioria de nós, oftalmologistas, se ocupa em manter ou melhorar a visão. Mas e quando isso não é possível? Fazer aquela cara de: “é, não há o que se fazer”. Ou então, encaminhamos para uma especialidade dentro da oftalmologia: “visão subnormal”, que se acompanha por uma equipe multidisciplinar para promover a reabilitação visual:

  1. Ortoptista: avalia as funções visuais ou, o que e quanto enxerga e procura os recursos e ferramentas tecnológicas para a autonomia e independência do deficiente visual
  2. Fisioterapeuta: cuida do desenvolvimento físico e motor do deficiente visual
  3. Terapeuta ocupacional: ajuda no desenvolvimento de habilidades práticas do dia-a-dia
  4. Professor de orientação e mobilidade: ensina técnicas, através da percepção dos sentidos remanescentes, para orientação espacial nos ambientes

E, sim o braille, com a palavra nas pontas dos dedos. Apesar de oficializado em 1962, somente a partir de 2019 que os livros didáticos passaram a ser impressos em braille através do Programa Nacional do Livro Didático Acessível.

Tudo isso parece muito técnico e eficiente. Mas, para um mínimo de empatia, ou para quem é uma entusiasta da visão e da beleza das estruturas oculares, a ausência de luz é assustadora. Assim como encarar Helen Keller (nascida em 1880, ficou cega e surda aos 19 meses), empoeirada na minha estante há muuuuuuito tempo:

Helen Keller:

“É verdade que às vezes me sinto envolvida por uma sensação de isolamento, como um nevoeiro gélido, quando me sento sozinha e espero ante o portão fechado da vida. Além dele há luz, música e doce companhia; mas eu não posso entrar. O destino, cruel e silencioso, barra o caminho. De boa vontade eu questionaria seu decreto imperioso, pois meu coração ainda é indisciplinado e apaixonado; mas minha língua não emitirá as palavras amargas e fúteis que sobem aos meus lábios e recuam de novo para o coração como lágrimas não derramadas. O silêncio cai imenso sobre minha alma. Então, chega a esperança com um sorriso e sussurra: “Há alegria no esquecimento de si mesmo”. Assim, tento fazer da luz nos olhos de outros o meu sol, a música nos ouvidos de outros minha sinfonia, o sorriso nos lábios de outros minha felicidade.

Também não gosto de pessoas que tentam falar comigo mais alto, de um modo paternalista, para que eu possa entender. São como pessoas que, quando caminham com você, tentam dar passos mais curtos para combinar com os seus; a hipocrisia nos dois casos é igualmente exasperante.”

Mergulhei no mundo de Helen Keller, repleto de imagens táteis e olfativas que acabam ganhando sensações. Por incrível que pareça, com um brilho comparável às cores mais vibrantes de uma tarde quente de verão. Por sorte nasceu numa família abastada e amorosa que a proporcionou uma professora intuitiva, sensível e perspicaz: Anne Sullivan. O que seria do mundo sem os professores?

Anne Sullivan e as palavras:

Embora tenha tido inúmeros problemas visuais ou justo por isso, tinha uma visão aguda e sensível da natureza, e sobretudo da quase materialização e personificação das palavras inclusive para coisas abstratas como a alma. A troca intensa de idéias com sua aluninha, permitiu que registrasse pérolas no processo de aprendizado, como ocorre em qualquer criança:

“A alma é invisível. Mas se eu escrevo o que minha alma pensa, então será visível e as palavras serão o seu corpo”

Ser no Mundo:

Para quem o mundo é invisível e silencioso, a interação se faz pelos outros sentidos: o olfato, o tato… e talvez o principal: a imaginação. A palavra não é escutada ou lida, é esculpida:

“A palavra provocou um sobressalto na minha alma e ela despertou, cheia do espírito da manhã, como uma canção alegre e exultante. Até aquele dia, minha mente fora como um quarto escuro, esperando que as palavras entrassem e acendessem o lampião, que é o pensamento (…)”

Para ela, ler e escrever em braille fez uma tremenda diferença: ganhou autonomia e conseguiu reler sua idéia que acabara de materializar. As palavras nos dedos…

Deficiência Visual:

É considerada portadora de deficiência visual quando apresenta acuidade visual igual ou menor que 10% no melhor olho, após a melhor correção, ou campo visual inferior a 20º, ou ocorrência simultânea de ambas as situações (art. 3º, I e II, combinado com art. 4º, III).

Dos 180 milhões de pessoas com deficiência visual no mundo, contam-se 16,6 milhões de brasileiros, ou 57% da nossa população com algum tipo de deficiência.

O que fazer?

Na prática, novamente: existe uma área da oftalmologia, visão subnormal, que propicia e coordena todo um cuidado multidisciplinar com inúmeras ferramentas tecnológicas cada vez mais avançadas, ainda bem!

Para além da técnica, recorro novamente a Helen Keller, que recebia inúmeras cartas de pessoas comovidas que queriam ajudar:

“Helen Keller, diga-nos o que fazer”

“Tentei dizer-lhes o que tem sido dito muitas vezes, que o ser humano mais bem instruído é aquele que entende mais sobre a vida em que está situado; que o cego, por mais pungente que seu sofrimento apele para nossos corações, não é uma pessoa isolada, separada, cujo problema possa ser resolvido por si mesmo, e sim um sintoma do desajuste social.

Os desafortunados não são apenas aqueles cuja enfermidade apela para nossa solidariedade pelo seu visível e palpável terror – o cego, o surdo, o mudo, o manco, o torto, o de mente fraca, os moralmente doentes. Os desafortunados incluem o vasto número daqueles que são destituídos dos meios e confortos que promovem a vida correta e o autodesenvolvimento. O modo de ajudar os cegos ou qualquer outra classe deficiente é entender, corrigir, remover as incapacidades e desigualdades de toda a nossa civilização. Estamos nos esforçando para impedir a cegueira.

Tecnicamente sabemos como preveni-la, como sabemos tecnicamente ter casas limpas, comida saudável e estradas de ferro seguras.

Socialmente não sabemos. Socialmente ainda somos ignorantes. A ignorância social está no fundo de nossas misérias, e se a função da educação é corrigir a ignorância, a educação social é, nessa hora, o tipo mais importante de educação.”

Igualdade social:

Já no início do século passado, um espírito de idéias livres e justas falava em acessibilidade. Assim podemos ajudar: deixar a pena de lado, entender que existem outras formas de sentir e aprender o mundo e a alma humana que, por fim, é a mesma em todos nós. Basta proporcionar aberturas para este entendimento, que começa ao abrir a nossa própria janelinha e sentir a brisa da igualdade de almas.

Passo por passo, ou tateando…

“My fingers cannot, of course, get the impression of a large whole at a glance; but I feel the parts, and my mind puts them together.” Helen Keller

Para ler mais:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/l4169.htm 

https://livroacessivel.org.br/

http://www.visaosubnormal.org.br/

https://www2.camara.leg.br/a-camara/estruturaadm/gestao-na-camara-dos-deputados/responsabilidade-social-e-ambiental/acessibilidade/pdfs

https://stacausa.com.br/

http://www.deficienciavisual.pt/r-HistoriaDaMinhaVida-HelenKeller.htm 

Para quem quiser assistir:

Escrito por

Cassia Suzuki

Médica oftalmologista, quase filósofa, mãe de 2 filhas e 2 cachorrinhas