cirurgião afrodescendente

Quando paro para pensar sobre raça/ancestralidade, logo me lembro nas aulas da faculdade, no fim do século passado, em que estudávamos as doenças sob alguns aspectos:

  • o que era e “onde ficava”,
  • quais seus sinais e sintomas,
  • em quem aparecia com mais freqüência,
  • como tratar.

Ficaremos aqui com o “em quem a doença aparecia”: faixa etária, raça, sexo.

A medicina procura classificar para facilitar o entendimento das diversas doenças. O que, por um lado facilita. Mas por outro, confunde e reduz a análise do quadro, o que se torna propício para deixar de fazer um diagnóstico mais preciso.

Mas o que significa exatamente isso? Vamos tentar exemplificar.

Anemia falciforme e Hipertensão Arterial Sistêmica como doença racial

Ainda na faculdade e residência, a anemia falciforme era relacionada à cor da pele, aos pretos. Quantas vezes observei a exceção da regra? Aí vinham com um: “não, Cassinha, é MAIS COMUM, e não SEMPRE…”
Outra doença associada à mesma população: Hipertensão Arterial Sistêmica. Aí sim.. mas, por outro lado, todos os pacientes que passavam por nós, estudantes no complexo HC, eram hipertensos (também, a vida na luta, inclusive por um atendimento, nunca foi mole não)!

E vários livros e artigos científicos com esta correlação entre Anemia Falciforme e Hipertensão Arterial e afrodescendentes. Mas será que esta associação é tão óbvia assim? Ou eu é que acabei presenciando o curioso acaso de tantas exceções?

Projeto Genoma e ancestralidade

O sequenciamento do genoma humano (1990-2003) acabou por apontar uma enorme variabilidade genética entre os seres humanos, impossibilitando sua classificação rígida nas clássicas raças: caucasiana, negra e mongol. Por outro lado, não somos todos iguais: embora a variabilidade genética seja gigantesca, existe uma certa semelhança entre os genes de indivíduos provenientes de regiões mais próximas.

Muito bem. Se a variabilidade genética é tanta que não corresponde à cor da pele, como se explica a relação entre a Anemia Falciforme e a Hipertensão Arterial Sistêmica e a “raça negra”? Ou seria aos afrodescendentes, considerando a mesma ancestralidade, ou região de origem, e facilidade de maior semelhança genética?

Raça negra, Anemia Falciforme e Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS)

A anemia falciforme é uma doença genética que altera a célula sanguínea hemácia, o que dificulta a infecção por um microorganismo responsável pela doença Malária. Assim, quando não havia tratamento para esta infecção, as pessoas com esta hemácia diferente se salvavam! Deste modo, a Anemia Falciforme se consolidou nas áreas em que a Malária reinava:  África subsaariana, África do Norte, Grécia, Itália, Oriente Médio, Península Arábica, Índia e até na China Ou seja, mais do que a questão epidemiológica racial, está a ancestralidade ou a região de origem, ou, geográfica.

E quanto à HAS? Muito se fala de uma hipótese em que os escravos que tinham um gene que os protegia da desidratação, sobreviviam no translado nos navios negreiros que não ofereciam nenhuma condição de subsistência. Entretanto, a genética pouco explica a HAS: inúmeros genes detectados, sem consenso sobre a real responsabilidade deles. Deste modo, a HAS pode ter mais a ver com as condições socioeconômicas e culturais que moldam as oportunidades de indivíduos e grupos, tornando-os mais vulneráveis.

Vamos fazer um exercício?

Estes tempos de pandemia são muito claros para exercitar nosso pensamento evolutivo. Algumas questões nos intrigam: Por que…

  • numa mesma família que mora no mesmo lugar, o coronavírus infecta um ou outro apenas?
  • algumas famílias foram destroçadas e outras passaram ilesas?
  • em algumas regiões, com hábitos e condições de higiene, houve uma contenção maior da epidemia e em outras, foi um caos?

E, suponha que, na vontade que os cientistas e médicos têm para encontrar algum sinal de que aponte quem tem mais ou menos chance de se infectar, acabem correlacionando a “genética que facilita a infecção pelo coronavírus” com uma “pinta no dedo do pé”… As perigosas e bem(?) intencionadas “fake news” que podem dar a falsa impressão de salvação ou condenação.

Ciência

De acordo com Michel Foucault em “bio-história e biopolítica”, um cientista legítimo é aquele que “em vez de valer-se do que sabe como pretexto para dizer o que se pensa, ele interroga, ao contrário, o que se pensa a partir do que ele sabe”. Ou seja, inicialmente, frente a um dado, nem sempre é possível AFIRMAR justo o que se pretendia ou esperava. Em geral, precisamos primeiro QUESTIONAR o que se pode pensar a partir dele, para depois verificar se corresponde ao que esperávamos. E muitas vezes temos surpresas!!!

Ou seja:

A genética muito nos ajuda em constatar a enorme variabilidade em uma mesma espécie, dificultando uma classificação baseada exclusivamente na aparência (fenótipo). Entretanto, muito valor foi equivocadamente usado como argumento a posições políticas ao longo do tempo. E daí ainda vale falar em raça: como um “modo de ser e sofrer” socialmente construído, carregado de vulnerabilidade e injustiças.

Enfim:

Este é só o (mais um) início de uma loooonga conversa.

 

Para ler mais:

Vamos conversar sobre raça

https://veja.abril.com.br/ciencia/o-novo-racismo-pseudocientifico/

SCHWARTZ, Robert S. “Racial Profiling in Medical Research”. New England Journal of Medicine, v. 344, p. 1392-1393, 2001

Zilbermint M, Hannah-Shmouni F, Stratakis CA. Genética da hipertensão em afro-americanos e outros afro-descendentes. Int J Mol Sci . 2019; 20 (5): 1081. Publicado em 2 de março de 2019. doi: 10.3390 / ijms20051081

Escrito por

Cassia Suzuki

Médica oftalmologista, quase filósofa, mãe de 2 filhas e 2 cachorrinhas