o meu, o teu, o nosso utero

Transplantes uterinos já são realidade em nosso meio!

A medicina reprodutiva vem apresentando muitos avanços tecnológicos nas últimas décadas e isto tem impactado a possibilidade de que novos modelos de família sejam possíveis e viáveis. Transplantes de órgãos nunca antes transplantados dão ensejo a novos caminhos, novas perspectivas na reprodução humana.

 

abrigo
Photo by Isaac Quesada on Unsplash

 

Como disse  o poeta:

“Toda forma de Amor vale a pena”

Estes dias atendi uma paciente minha que foi barriga solidária para uma conhecida que nasceu sem útero.

Pois é… existem situações onde a mulher pode nascer sem o útero. É a chamada Síndrome de Rokitansky.

gestante

Sd.Rokitansky

A Síndrome de  Mayer-Rokitansky-Kuster-Hauser é um tipo de anormalidade de desenvolvimento embrionário onde a menina nasce sem o terço superior da vagina e útero, mas tem ovários normais. Sua incidência é de 1 para cada 5.000 meninas nascidas (bastante, não é? Se pensarmos que o câncer de mama, tão falado, tem incidência de 3-4 para cada 5.000 mulheres…) e merece atenção e conhecimento.

Estas meninas são cromossomicamente normais 46, XX e apresentam desenvolvimento físico adequado para a idade, pois seus hormônios costumam ter níveis fisiológicos também.

A suspeita de que algo pode estar diferente acontece quando, já na puberdade, a primeira menstruação não acontece. É o que chamamos de amenorréia primária.

Uma investigação mais detalhada mostra então que a menina tem vagina curta e que seu útero está ausente.

Para tal condição não há uma tratamento clínico que possa resolver, e até então a única solução para estas moças seria a ajuda de uma barriga solidária. Entretanto sabemos que pessoas como minha querida paciente são raras e valiosas, pessoas dispostas a doar seu corpo em nome do amor ao próximo estão em falta por aí. E então, o que fazer?

ninho

Nessa trajetória de buscar tratar estas mulheres, vários grupos de  pesquisadores pelo mundo cortejaram a idéia de transferir um útero de uma mulher doadora para uma receptora, propiciando assim que esta fosse capaz de abrigar a gestação tão sonhada.

Foi finalmente no ano 2000 que a primeira cirurgia desse tipo aconteceu na Arabia. Entre percalços e dificuldades técnicas naturais no desenvolvimento da medicina de ponta, em 2013, o grupo sueco realizou uma série de transplantes uterinos a partir de úteros de doadoras  e finalmente em 2014 nasceu a primeira criança do grupo, seguida depois de outras gestações bem sucedidas em outras pacientes do estudo.

hospital das clínicas da faculdade de medicina da usp
arquivos fmusp

Olha o Brasil aí, pessoal!

Aqui no nosso Brasil, pesquisadores do HC-FMUSP realizaram o primeiro transplante uterino em Setembro de  2016. A paciente engravidou através de Fertilização assistida no ano seguinte e em Dezembro de 2017 esta mulher teve seu parto de bebê nascido vivo.

Os transplantes uterinos ainda hoje ocorrem apenas em centros multidisciplinares de ensino e pesquisa como o Hospital das Clínicas da FMUSP, no contexto de cuidadosos projetos de pesquisa, mas o sucesso dessas empreitadas traz novas esperanças a pessoas que antes não tinham nenhuma.

Quando se cogita um transplante uterino?

mala vazia
Photo by form PxHere

Já falamos da Sindrome de Rokitanski, mas esta não é a única condição que pode gerar a necessidade de um transplante uterino.

A cirurgia de transplante uterino é considerada quando a mulher possui o que chamamos de fator uterino absoluto de infertilidade. Isto pode ser, claro, a ausência congênita do útero, como também as mal-formações ou deformidades desse órgão, inatas ou adquiridas, que inviabilizam um tratamento de recuperação de sua função reprodutiva. Ainda quando a mulher precisou ser submetida a uma cirurgia de retirada o útero para tratamentos (em geral por neoplasias) e ainda não teve chance de ter constituído sua família antes disso.

ursinho dentro da mala
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Há estudos que mostram que em torno de 40% das mulheres submetidas a histerectomias (por diversas causas) tinham menos de 44 anos quando da cirurgia.

Claro, a maioria destas pessoas já teve seus filhos naquele momento, mas e quem não pode? 

Câncer de colo uterino

Uma das principais causas de histerectomias em mulheres jovens e sem filhos é o tratamento do câncer de colo uterino, onde 1/3 das pacientes é diagnosticada antes dos 40 anos de idade. Trabalhamos em muitas frentes durante os tratamentos das pacientes com câncer de colo uterino no sentido de desenvolver mais e mais os tratamentos preservadores da fertilidade, de muitas formas.

red womb
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Para o tratamento dos tumores do colo do útero existem cirurgias pautadas na conservação da função reprodutiva.

Chamadas de traquelectomias, nessa modalidade a paciente é submetida a retirada do colo uterino com todos os princípios oncológicos mas conservando o corpo uterino, para possibilitar que este corpo uterino abrigue uma gestação no futuro.

Ainda temos também trabalhos (atualmente em projeto de pesquisa) para oferecer transplante autólogo de ovário nas pacientes que necessitarem de tratamento com radioterapia pélvica. Explico: a paciente que tem câncer de colo uterino pode ser tratada basicamente por cirurgia ou radioterapia. Durante a  radioterapia pélvica, os ovários são expostos a radiação ionizante que inativa os ovários para suas funções: hormonal e reprodutiva.

Existem duas técnicas em estudo para preservar estes ovários: a transposição dos ovário (quando a paciente tem seus ovários levados para uma região fora do campo de abrangência da radiação mais intensa, salvaguardando a função) ou o transplante de tecido ovariano (onde os ovários da mulher são removidos e congelados antes da radioterapia e estes depois são reimplantados nela para que recuperem sua função).

Existe também, para estas mulheres a possibilidade de congelamento de óvulos ou de tecido ovariano para possibilitar uma fertilização assistida no futuro.

Sd. Asherman

Também as mulheres que vivenciaram múltiplos abortamentos e curetagens uterinas podem desenvolver a Síndrome de Asherman, que consiste na formação de aderências firmes entre as paredes do útero, fechando a cavidade uterina. Dessa forma, não há, nestas pacientes, uma cavidade adequada para que uma gestação se implante e cresça.  É como se o útero se tornasse sólido. A Infertilidade dessas mulheres gira em torno de 50% pelo menos. Existem tentativas de correção cirúrgica da cavidade uterina, mas a depender da severidade da injúria às paredes uterinas, é difícil tornar o útero funcional novamente.

mãe e filha
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Mãe é mãe

Curioso é observar que, excetuando-se os casos de transplante uterino de doador falecido (como acontece com os transplantes renais), em boa parte  dos transplantes de útero entre-vivos, a doadora é a própria mãe da paciente, ou uma parente próxima, como uma irmã.

E assim vai se perpetuando o legado, de geração em geração, e o mesmo útero que fez nascer a filha também pode trazer ao mundo os netos.

Famílias do futuro

Cada passo que damos na direção de novas possibilidades em medicina reprodutiva trazem diversos questionamentos e possibilidades que podemos imaginar, de futuros possíveis onde estas coisas fantásticas estejam ao alcance de todos que precisam.

Como pesquisadores e estudiosos do assunto, sempre nos questionamos a cada passo do caminho, a respeito da ética envolvida em todas estas frentes de pesquisa e lutamos a cada dia para o melhor e mais correto seja feito para cada pessoa que nos procura.

Abrimos portas ou quando isto não é possível, construimos janelas.

 

mulheres juntas
Photo by form PxHere

Sindrome de Rokitanski : https://www.scielo.br/j/rb/a/5rdQsTqnHWHnLpHVQPWFK7n/?lang=pt

Síndrome de Asherman: https://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%ADndrome_de_Asherman

Entrevista BBC Brasil com paciente de Sd.Rokitansky:   https://www.bbc.com/portuguese/geral-53779164

Primeiro transplante uterino no Brasil: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(18)31766-5