Olhos vivos

“Lentamente, seus olhos se ajustam à luz do sol. Primeiro ele só consegue ver sombras. Gradualmente, ele consegue ver os reflexos de pessoas e coisas na água e depois vê as pessoas e as coisas em si. Eventualmente, ele é capaz de ver as estrelas e a lua à noite até que finalmente ele possa olhar para o próprio sol.” Platão, A República, Livro VII, O Mito da Caverna

A córnea

A córnea é um tecido transparente. Confere o brilho e o reflexo como uma lente convergente, sem vasos, e que pode alterar estas características por alguma doença infecciosa ou não. A mais comum é o ceratocone, já mencionado por aqui. Quando se perdem estas propriedades de modo irreversível, o transplante de córnea está indicado.

O transplante

Justo por sua característica avascular e imunológica, a córnea talvez tenha sido o primeiro órgão a ser transplantado. Do primeiro transplante bem sucedido – realizado em Viena por Eduard Zirm em 1905 – aos dias de hoje, os avanços do conhecimento científico da segunda metade do século XX alavancaram os resultados que, atualmente são muito bons. Deste modo, mais da metade dos transplantes realizados no Brasil, são de córnea (14.778 dos 26.518 em 2018). 96% deles, pelo SUS. Ainda assim, há muita gente na fila de espera pelo procedimento: 8.769 também em 2018. Com a pandemia, esta lista aumentou em 2020 para 14.249.

O olhar

Eu me lembro de entrar em contato com esse tema, ainda no internato. Estava no PSC (Pronto Socorro da Cirurgia), quando chegou um garoto de 8 anos. Olhos vivos: o brilho da córnea, se preservada sua hidratação, pode persistir até 6 horas após o óbito. Ele pulou de uma árvore, com um cinto amarrado no tórax… e no pescoço: queria voar! Eu ainda estava metabolizando a cena, tentando entender por que ele ainda estava lá.. rapidinho vieram os oftalmologistas responsáveis pela captação de órgãos. Achei incrível! Os olhos continuariam vivos!

Ainda antes da Lei dos Transplantes, de 1997, eu estava no primeiro ano da residência, e fui contactada sobre a possibilidade de doação de córneas, por um residente da cirurgia. Às 22:00, liguei para meu supervisor, bem animada pela generosidade da família. Meu supervisor não ligou muito pra minha empolgação: “tá bom, Cassinha, quando TUDO estiver pronto, a família autorizado, só aí você entra em contato comigo novamente, ok?” Nem preciso dizer que aí entendi o descaso: passei a noite acordada à toa, naquele plantão tranquilo em que poderia ter dormido a noite inteira. Mas foi uma decepção: e se eu tivesse conversado com a família? Seria diferente?

Até que vivenciei o outro lado: meu primo, jovem, um aneurisma cerebral se rompeu. Fomos atropelados pela fatalidade: na véspera estive com ele, que me ajudava na reforma do meu apartamento. Mas não havia o que fazer: estado irreversível. Parece que isso ocorre sempre com as melhores pessoas: talvez sejam justo elas que já tenham aprendido tudo o que precisavam aprender por aqui, com missão cumprida. Mas bem que essa generosidade e grandiosidade que sempre fez parte de sua vida, poderia se estender!

Conversei com minha prima sobre a doação de órgãos, os casos que vivenciei, as histórias…
Revi, nela, Aqueles olhos vivos

“… que se antes via só as sombras,
foi capaz de ver as estrelas e a lua à noite
até que finalmente pode olhar
para o próprio Sol.”

Para ler mais:

Moffatt SL, Cartwright VA, Stumpf TH. Centennial review of corneal transplantation. Clin Exp Ophthalmol. 2005 Dec;33(6):642-57. doi: 10.1111/j.1442-9071.2005.01134.x. PMID: 16402960.

ABTO Associação Brasileira de Transplante de Órgãos

Escrito por

Cassia Suzuki

Médica oftalmologista, quase filósofa, mãe de 2 filhas e 2 cachorrinhas