“Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou.”
Heráclito
Toda mudança é um luto
Toda mudança é um luto. Todos os dias somos pessoas diferentes de quem fomos no dia anterior.
Tudo muda.
A água que passa debaixo da ponte nunca é a mesma.
A discussão de ontem pode piorar um casamento ou aprimorar um relacionamento, hoje pode haver uma separação, um divórcio ou a assinatura de um contrato de trabalho em conjunto.
A pessoa de ontem pode ser igual no espelho, mas é diferente hoje.
Quando há um ano entramos em isolamento social, ninguém sabia que teríamos um luto e saudades da nossa vida pregressa… Mas quando uma pessoa querida deixa de estar ao nosso lado, tudo pode mudar!
É normal nesta situações sentir-se triste, desanimado, às vezes sem rumo no período do luto.
Mas quando o luto é anormalmente prolongado, intenso, incapacitante e fora do contexto cultural pode ser chamado de Transtorno do Luto Complexo Persistente.
Luto Complexo Persistente
O Luto complexo persistente ocorre quando, após 12 meses do falecimento do ente querido, a pessoa ainda sente, na maior parte dos dias, intensa e significativamente, saudades persistentes, dor e pesar, além de preocupação excessiva sobre as circunstâncias da morte.
Adicionalmente, há um imenso sofrimento com dificuldade em aceitar a morte, assim como o desejo de morrer, dificuldade em criar novos vínculos afetivos de confiança, sensação de isolamento juntamente com sentimento de que a vida não faz mais sentido.
Fatores de risco para luto complexo persistente
Algumas situações podem ser consideradas fatores de risco para um luto complexo, como
- A natureza da morte, se for um evento súbito, traumático ou violento.
- Situações onde não há possibilidade de preparação ou limitando a oportunidade de se despedir, de dizer o adeus.
- A natureza do ambiente, promovendo dificuldades associadas a cuidados médicos mais invasivos e limitação da discussão sobre os cuidados dos últimos momentos de vida.
- Uma demanda excessiva e simultânea de outros cuidados e preocupações, bem como baixo nível de rede de suporte social.
Vale a pena ressaltar que o Luto Complexo Persistente não é considerado um Transtorno Psiquiátrico propriamente dito e que está ainda em fase de estudos, são critérios para utilizar em pesquisas.
E se complicar? Depressão e luto
Por outro lado, mesmo antes de completar os 12 meses de luto, pode haver um quadro depressivo associado.
Anteriormente, no período de luto inicial de 2 meses, não se considerava um diagnóstico de transtorno depressivo, pois o sofrimento deveria ser esperado e decorrente do falecimento do ente querido. É normal sentir tristeza, descrença, solidão e sensação de vazio nestas situações.
Porém na elaboração do DSM-V, o manual diagnóstico de psiquiatria usado por profissionais de saúde nos EUA e no mundo todo, foi excluído este critério.
O DSM-V tem como objetivo fornecer um diagnóstico o mais preciso possível para pessoas que precisem de ajuda, assim como excluir pessoas que não necessitem desta abordagem. E esta foi uma discussão ampla, pública e baseada em evidências científicas.
Entretanto segundo alguns, a inclusão destes 2 meses poderia “medicalizar” um período em que estes sintomas e sentimentos são esperados.
Por outro lado, deixar o luto como critério de exclusão, ou seja, se a pessoa que estiver no período de luto não receber o diagnóstico de transtorno depressivo quando houver um, pode deixar quem necessite de tratamento sem este importante recurso.
Como o tema é controverso, vou colocar aqui algumas das razões para pensar.
Para pensar
- As síndromes depressivas que ocorrem durante o luto apresentam as mesmas características de outras depressões não relacionados ao luto, podendo se tornar crônicas ou recorrentes se não tratadas, além de interferir na resolução do luto e a resposta da pessoa a situação como um todo.
- O impacto do luto não necessariamente é diferente de outras perdas significativas e importantes na vida pessoal.
- Da mesma forma a depressão que ocorre durante o luto responde igualmente a medicações antidepressivas
- Bem como a possibilidade de neuroprogressão com cada episódio depressivo não tratado possibilitando maior sensibilidade a próximos episódios
- Além disso, a noção de estabelecer um precipitante psicossocial (como a perda de um ente querido) como a “causa” da depressão deixa de considerar algumas variáveis. Pode haver ter uma lembrança imprecisa ou distorcida do início da depressão, ou não estar ciente de condições médicas e neurológicas preexistentes que estão “impulsionando” a depressão.
- Da mesma forma os julgamentos sobre como “proporcionais” ou “desproporcionais” de uma pessoa com sintomas depressivo podem estar repletos de incertezas e ser influenciados por vieses culturais.
Muito complexo?
É mesmo. Por isso, na dúvida, procure sempre o seu médico de confiança para ajudar a entender melhor e ajudar. Afinal estamos todos vivendo um luto da nossa vida pre pandemia, o que em graus diferentes para cada um, não esta sendo fácil.
O luto é um momento de grande transições e, que podem ser extremamente difíceis, dolorosas, mas abrindo espaço para transformações a partir deste ponto de inflexão.
Se o sofrimento estiver dificultando demais as suas atividades ou a vida, vale a pena procurar ajuda.
Dependendo da situação isso pode incluir ou não medicamentos.
O tratamento psiquiátrico quando necessário, não suprime a experiência, nem a complexidade e a multidimensionalidade do luto.
Apenas possibilita que a pessoa tenha condições de superar seu sofrimento com todas as suas ferramentas funcionando adequadamente.
Nada fica igual, os sonhos podem mudar, mas não se pode ficar sem a capacidade de sonhar! leia mais
Referências bibliográficas:
American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (5th ed.).
Iglewicz, A., Seay, K., Zetumer, S. D., & Zisook, S. (2013). The Removal of the Bereavement Exclusion in the DSM-5: Exploring the Evidence. Current Psychiatry Reports, 15(11). doi:10.1007/s11920-013-0413-0
Mayland CR, et al. Supporting Adults Bereaved Through COVID-19: A rapid review of the impact of previous pandemics on grief and bereavement. J. Pain Symptom Manage. 2020. doi:10.1016/j.jpainsymman.2020.05.012
Meyer, J. H. (2017). Neuroprogression and Immune Activation in Major Depressive Disorder. Neuroprogression in Psychiatric Disorders, 27–36. doi:10.1159/000470804
Pies, R. W. (2009). Depression and the pitfalls of causality: Implications for DSM-V. Journal of Affective Disorders, 116(1-2), 1–3. doi:10.1016/j.jad.2008.11.009
Zisook, S., Corruble, E., Duan, N., Iglewicz, A., Karam, E. G., Lanuoette, N., … Young, I. T. (2012). THE BEREAVEMENT EXCLUSION AND DSM-5. Depression and Anxiety, 29(5), 425–443. doi:10.1002/da.21927
Para saber mais:
[…] de alguma maneira, (e ajuda sempre vai bem!) percebemos que quem perdemos está em nós […]