mulher afrodescendente solitária perto da janela

Nestes tempos de pandemia, muitos devem se perguntar como um médico consegue lidar com o adoecimento e a morte, já que isso faz parte do nosso trabalho, de nossa rotina.

Mas este cenário da pandemia, como de uma guerra, tem um diferencial: pessoas que estavam muito bem, de repente não estão mais conosco. É tudo muito abrupto, não parece real. Fica, neste entremeio meio sonho meio realidade, uma saudade…

Por vezes a saudade é tanta, que não há como usar mecanismos para deixá-la leve. Não é possível pintá-la, esquadrinhá-la, envolvê-la num emaranhado de palavras doces e escondê-la… Aparece, nua e crua, principalmente na escuridão do nosso ponto mais profundo.

Nesses momentos, a falta imensa do imput sensorial com a voz de quem se foi, o toque do celular próprio, as imagens nas redes sociais, o abraço… o olhar… ; precisa se transformar para não abafar.

E se faz dor.

Começa atrás dos olhos, dispara a glândula lacrimal. Prossegue pela nuca e irradia para dentro da caixa torácica, alterando a respiração e a frequência cardíaca. Não se tem mais idéia da organização interna do corpo – onde vão parar os órgãos, se o vazio é tão grande? Quanto maior a lembrança, maior o rombo. Acabo invaginando, como que sendo sugada por esse buraco negro, enquanto o vazio toma conta do meu espaço. Me perco nesse espaço, não reconheço mais meus limites.

Sou ponto. Dor pura… e lágrimas.

Pouco a pouco, consigo perceber a respiração… os batimentos cardíacos…

 

Começo a re-expandir de modo regular, uniforme, todos os meus infinitos pontos emanam dessa força vital centrífuga. Reconstituo-me como uma esfera de superfície lisa e escorregadia, nada me segura.
Passam por mim e nada fica.
Passo por tudo e em nada me prendo.
Não há pontos frágeis ou deformáveis para em mim penetrar.
Sou rápida, veloz, intrépida, esperando que, a qualquer momento, toque-me novamente com seu imput sensorial.

Talvez assim me salve! Talvez consiga evaginar e abraçar aquele mundo que um dia foi tudo.

Ainda no modo esfera, acho que por instinto de sobrevivência, ou ainda pela beleza que a Natureza nos oferece, nos esbarramos em um som.. um aroma… uma imagem

E, de alguma maneira, (e ajuda sempre vai bem!) percebemos que quem perdemos está em nós sim.

Fez, faz e fará Vida.

 

Para ler mais:

O luto de todos nós/toda mudança é um pequeno luto mas, e se complicar?

Luto, morte e vida

Escrito por

Cassia Suzuki

Médica oftalmologista, quase filósofa, mãe de 2 filhas e 2 cachorrinhas