Professor Pardal: Dr. Hisashi Suzuki

Para meu pai, e minha filha

A gente sabe de muitas histórias de famílias com a mesma profissão. Como Gabriel Garcia Marquez em que os personagens e os nomes de gerações vão se entrelaçando, confundindo, explicando…

Assim como nossos pacientes que vão passando, pais, filhos, netos, avós…

Sim, é sempre um causo que nos leva a refletir. E desta vez foi o
Sr. X, 62 anos, olho único com 5-10% da visão. Acidente de trânsito em 1986, antes da obrigatoriedade do cinto de segurança. Perfurou os 2 olhos aos 25 anos, ao bater a cabeça no para-brisa. Um não teve jeito. O outro… Frente a uma junta médica no ambulatório do Hospital das Clínicas – FMUSP: “Sr. X, só um louco pode dar conta disso!”

O Sr. X foi atrás do louco, na época chamado de Prof. Pardal.

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E eu me lembro, na infância, meu pai na oficina dele: um armário embutido transformado em bancada. Um microscópio, uma morsa de bancada, moto-tool, motorzinhos de Hering Rasti, uma lâmpada pendurada, seringas cortadas, agulhas, alicates, chaves de fenda… Meus irmãos enrolando bobinas como diversão de fim de semana na frente da TV num sábado à noite. Não tínhamos muita idéia da finalidade, muito menos da importância.

Lembro também dele se trancar no mesmo quarto, desta vez uma mesinha perto da janela, com uma máquina de escrever até altas horas da noite: e a gente NÃO PODIA ENTRAR, a não ser para levar lanchinhos que minha mãe preparava.

Ainda sem muito entender da importância.

Aí faltamos na escola para assistir a tese de docência: meu pai vestido com a beca da faculdade, os amigos de sempre na platéia na torcida, passando os slides, e depois um quadro com a frase dele:

“Universidade é figura de proa. Sendo figura de proa, tem que desenvolver. Só desenvolvendo e sofrendo no dia a dia é que a gente constrói alguma coisa ou pode, pelo menos, se equiparar ao desenvolvimento internacional. Toda vez que nós só absorvemos coisas desenvolvidas fora, no máximo conseguimos igualar, e nunca superar.”
Prof. Dr. Hisashi Suzuki

Meio sem saber, quase por dever, tornei-me oftalmologista. Acho que me embebi da luz que irradiava dos olhos do meu pai. A cada caso, a cada cirurgia, a cada idéia dos passos, da função, das descobertas. Sempre peguei muito leve, receio da dor do paciente. E aprendi: “a dor faz parte da cura”. Se ele soubesse deste ensinamento em minha vida, da liberdade que isso me trouxe…

Foi num piscar de olhos que tudo isso veio, como num filme, na minha sala com Sr. X e família. Meia luz, imagem um pouco borrada pelo excesso de filme lacrimal… E, sem dúvida, em ressonância com os reflexos luminosos de cada olho naquela sala. De orgulho, gratidão, acolhimento, coisa muito do Bem de Platão, aquele que nos traz a pureza e a Verdade da alma.

E o mesmo Bem que encontro a cada descoberta da minha filha, cada contato com pacientes, professores, preceptores, colegas.

Com a pureza e a jovialidade do que está porvir.

Gratidão por tudo isso.

 

Para ler mais:

Nakashima, Y: Vitrectomia USP: um tributo ao pioneirismo o Dr. Hisashi Suzuki – Rio de Janeiro: Cultura Médica, 2012

Escrito por

Cassia Suzuki

Médica oftalmologista, quase filósofa, mãe de 2 filhas e 2 cachorrinhas