Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.

Alberto Caeiro, 1889

É Primavera…

A vida inspira gestos de doação

Entro naquela UTI (Unidade de Tratamento Intensivo) todas as semanas. Faço isso tão rotineiramente que não percebo mais o cheiro peculiar dos curativos, dos líquidos assépticos, da urina, do sangue. Não me perturbo mais com os alarmes e bips dos monitores que constantemente avisam a pressão arterial, os batimentos cardíacos.

Pergunto aos pacientes como se sentem. Converso sobre a novela e o jogo de futebol na TV. Pergunto sobre a namorada, ou o filho. Parece que os conheço há muito tempo.

Por alguns instantes todos nós, médicos, enfermeiros e pacientes queremos esquecer a doença grave que tratamos ali. Queremos ter uns minutinhos de normalidade antes de auscultar, examinar, palpar, medir, colher exames…No mesmo quarto nem todos estão em condições de conversar. Ao lado um paciente está sedado e respirando por aparelhos, tem uma máquina que respira por ele e outra que faz o sangue circular, ao invés do coração, outra que faz a diálise e trabalha no lugar dos rins que estão paralisados.

É inverno…

Nesta UTI todos aguardam um transplante cardíaco.

Há um menino de 16 anos. Há uma mãe de 39 anos. Há um senhor de 56 anos.

A espera  por um coração de um doador faz a esperança ser uma mensagem de alívio e ao mesmo tempo uma tortura.

Eu mesma as vezes procuro amenizar meus sentimentos pensando que depois do inverno, surgem os ramos mais verdes e as flores. Talvez isso seja doar um órgão, fazer nascer um novo jardim no deserto.

Transplante cardíaco: Florescer

A medicina é uma linha contínua, onde uma descoberta leva a outra

Mas hoje, aconteceu algo na UTI. Nesta madrugada veio do interior do estado um coração para o menino. Ele foi transplantado. Está no seu primeiro dia de pós transplante cardíaco. O efeito da anestesia passou e ele acordou da cirurgia, já está consciente e respirando espontaneamente. O curativo no tórax praticamente o divide em dois de tão grande sobre todo o esterno. Ainda piscando assustado o menino sorri. Estou fazendo seus exames de ecocardiograma à beira do leito e entra sua irmã mais velha. Ele é da Bahia, veio se tratar em São Paulo. Está sem os pais, tem outros 5 irmãos em Ilhéus. Ela segura a mão emagrecida dele, o gesto não me escapa, e diz:

“O Neco está te esperando para jogar futebol de novo com ele. Todos nós estamos muito felizes, rezamos a noite toda por você”.

De repente, eu senti que uma lágrima rolava no meu rosto. Ouvi os bips, os alarmes, e senti os odores da UTI. Chorei de felicidade por eles. De gratidão por que teve a força e a generosidade de transformar o inverno de seu ente amado ( um doador) na primavera daquele menino desconhecido. Pode haver amor maior? Talvez a Humanidade não seja tão ruim quanto os jornais noticiam.

O transplante cardíaco pode fazer a vida florescer.

Como me orgulhei da Medicina naquele instante, essa mistura de ciência, paixão, compaixão, tecnologia que há milhares de anos temos construído para fazer essa verdadeira proeza: aquele coração doado estava batendo naquele peito e iria algum dia jogar futebol.

O início

Em 1964, o cirurgião americano James Hardy realizou o primeiro transplante cardíaco colocando o coração de um chimpanzé em um paciente. Este viveu por poucas horas depois da cirurgia, mas o coração transplantado havia batido e isso possibilitou que o estudo dos transplantes de coração avançasse.

Em 3 de dezembro de 1967, na África do Sul  o cirurgião sul-africano Christiaan Neethling Barnard removeu o coração de uma jovem que morreu em um acidente automobilístico e o colocou no peito de um paciente de 54 que acordou da cirurgia, consciente e falando. O paciente sobreviveu por 18 dias, falecendo por uma pneumonia em consequência dos medicamentos imunossupressores utilizados para evitar a rejeição.

A descoberta da ciclosporina em 1972 transformou o transplante cardíaco numa possibilidade real. Esse composto é um derivado de fungos capaz de suprimir a rejeição aos órgãos transplantados sem um grande dano no sistema imunológico do receptor.

No Brasil em 1968 o professor Zerbini realizou o primeiro transplante cardíaco no Hospital das Clínicas das Faculdade de Medicina da USP.

Como funciona um transplante cardíaco?

Veja o vídeo abaixo para uma boa e rápida explicação:

Hoje em dia esse procedimento salva a vida de milhares de pacientes ao ano. Embora ainda exista uma longa fila de espera e muitos pacientes morram antes de conseguir serem transplantados.