juntos

“O senhor é tão jovem, tem diante de si todo o começo, e eu gostaria de lhe pedir da melhor maneira que posso, meu caro, para ter paciência em relação a tudo que não está resolvido em seu coração”
Rilke, RM. Cartas a um jovem poeta.

 

Este começo não é fácil. Muito conteúdo, reações bioquímicas, nomes de diversos ossículos com inserções de fibras musculares. Células, tecidos, sistemas… Partículas, pedaços de um todo que não conseguimos entender como se coloca em pé, andando, respirando ou correndo!

O que estrutura, movimenta e perturba. Do ácido nucleico à pele, o maior dos órgãos, e seus distúrbios.

E eis que chega a primeira entrevista com o outro. A primeira conversa direcionada a desvendar a hipótese diagnóstica, o exame físico e os complementares a nos auxiliar a fechar o diagnóstico, assim como seus critérios e seus protocolos de tratamento – bem referendados. Tudo cientificamente comprovado.

Sim, eis o primeiro capítulo da aventura. Estamos no terreno investigativo, adquirimos ferramentas para encontrar o criminoso e reestabelecer a ordem anatômica e fisiológica.

Somamos e acumulamos ferramentas. De número cada vez maior!!!

E isso basta?
– Sim, na maioria das vezes.
Satisfaz?
– Acabamos nos sentindo malucos por pensar que não. Afinal, a cada distúrbio temos um protocolo já referendado como “o melhor”. E a vida vai bem assim: sempre atualizando as novas descobertas e “o melhor”.

Mas em alguns momentos, a engrenagem parece rodar em falso. Quantas vezes não senti isso?

“Caso o seu cotidiano lhe pareça pobre, não reclame dele, reclame de si mesmo, diga para si mesmo que não é poeta o bastante para evocar suas riquezas”
Rilke, RM – Cartas a um jovem poeta.

Talvez, meu caro, este seja o ponto da virada. O ponto em que a Humanidade da Medicina nos toca. E nada como um poeta para nos ensinar:

“Eu não saberia dar nenhum conselho senão este: voltar-se para si mesmo e sondar as profundezas de onde vem a sua vida (…) Aceite-a como ela for, sem interpretá-la. Talvez ela revele que o senhor é chamado a ser um artista. Nesse caso, aceite sua sorte e a suporte, com seu peso e sua grandeza, sem perguntar nunca pela recompensa que poderia vir de fora. Sua vida encontrará a partir deste momento caminhos próprios, e que eles sejam bons, ricos e vastos é o que lhe desejo mais do que posso manifestar”
Ainda Rilke para um jovem poeta.

Sim, esta é a Arte da nossa profissão. Aquela que percebe a generosa Humanidade que orquestra a melodia das ferramentas ao alcance das nossas mãos (da Ciência, da Arte, da Ética e da Estética). Estamos diante do Cuidado. E não tenha medo dos erros. Que inclusive serão maiores e mais lembrados do que os acertos. Aqueles são os grandes responsáveis pelo aprimoramento das nossas ferramentas.

Por fim. Se ainda me escuta:

“A palavra do médico é singela e modesta. Não me induzas a pompear grandezas.”
… parafraseando Marco Antônio

Aí talvez esteja a alma do exercício da Arte Médica: a parresia, ou o franco falar, ou falar a verdade. Sempre.

Não aquela verdade imposta, ou uma transparência arrogante, que como um trator, derruba quem se colocar na frente.

É falar a verdade atenta ao kairós, ao momento certo do outro, com um certo “tato de finura” que nada mais é do que um tato de respeito e generosidade ao outro. A palavra singela e modesta, com a força da verdade legítima, aquela que evita lisonjas ou a retórica.

Estamos diante de uma “estética da existência”, de um modo de ser e praticar a verdade consigo e com o outro, na justa medida, que não se deixa seduzir ou ofuscar pela lisonja ou retórica.

Acho que é isso. Se ainda me escuta.

E seguimos, caro colega.

Juntos!

 

Escrito por

Cassia Suzuki

Médica oftalmologista, quase filósofa, mãe de 2 filhas e 2 cachorrinhas