sensação de liberdade

Liberdade de escolha e individualismo

“Cada um de vós em separado tem a alma astuta da raposa,

mas todos juntos sois como um tolo de cabeça oca”
Platão, A República

Viver uma pandemia é arrebatador! Apesar dos diversos pontos negativos e catastróficos em nossas vidas, uma experiência vivida no limiar das fronteiras, se bem pensada e sentida, pode nos ensinar muito!

Clique abaixo para uma experiência imersiva

O tempo da pandemia:

Uma das maiores sensações-limite é sobre a noção de tempo: nunca este fora tão notado por nós! Em todos os sentidos! Mas talvez o maior deles tenha sido a velocidade em que percebemos as consequências dos nossos atos, dado que o vírus tem seu tempo. Talvez na atualidade, este seja o Senhor do tempo: ao contraí-lo, seus passos são previsíveis: a janela imunológica, a invasão pelas células do hospedeiro, a promoção ou não de uma cascata de interleucinas, a consequente atividade inflamatória de reações aí sim imprevisíveis. Mas o tempo até então é sempre o mesmo. Assim, o que se passava no mundo, inevitavelmente chegaria a nós em semanas: o que se passava em Manaus, inevitavelmente chegaria a nós em semanas. E por aí vai…

Por outro lado, o esforço mundial de toda nossa potência inovadora científica, aceleraria nossas defesas: a vacina, o uso de máscara, o distanciamento… E a consequência dos nossos atos, previsível e assustadora. Se antes, um ato se tornava aparentemente inocente por se misturar entre outros tantos e se dispersava pelo looooooongo tempo até uma efetiva consequência, hoje em dia, por este tempo comandado pelo vírus, o soco na cara virá praticamente em 2-3 semanas.

Nesta nova noção, tanto de sociedade (não temos mais a propriedade de ter o vírus somente conosco: ele se espalha! Muito! Não se pode mais pensar em indivíduo, mas em zilhões!!!), quanto de tempo (o que se faz hoje dificilmente se perderá pelo tempo: virá em 2-3 semanas!!!), percebemos como um comportamento individual retorna para nós pela sociedade como um soco na cara!

Exemplos em que a relação causa-consequência parece se diluir no tempo:

  • “Qual o problema de tirar de quem não tem dono? Qual o problema de fazer um hemograma a mais? Pago convênio para isso mesmo…” Ora, isso aumenta o gasto do plano de saúde: dados da ANS: a incidência de fraudes detectadas está perto de 30% (só as detectadas…). E quem paga a conta? Evidentemente não é o plano de saúde… Isso para não pularmos para as corrupções…
  • “Qual o problema de jogar esta embalagem na rua? Uma só não faz diferença…” Não preciso nem reiterar por aqui…
  • “Qual o problema de sair com uma galera sem máscara? Todos vão pegar isso mesmo… É por Deus: se eu tiver que pegar, vou pegar de qualquer maneira.”
  • “Por que tenho que correr o risco de me vacinar? Isso vai entrar no meu DNA, vou ser uma soja modificada! Deixe os outros se vacinarem, aí eu me protejo por tabela.”

Mas não vou nem entrar no mérito político disso tudo…

…aí vai virar Fla X Flu. Vamos apenas mencionar um fundamento disso tudo, a liberdade de escolha e o individualismo.

Ninguém gosta de obedecer regras. Isso parece cercear extremamente nosso direito de escolha. Faz total sentido! Cansamos de obedecer nossas mães para levar um casaquinho, e voltar com ele na mão, só nos perturbando para não perdê-lo.
Mas existe uma diferença MUITO grande entre obedecer algo externo e ilegítimo e fazer o que achamos justo. Entre cumprir o que os outros acham justo e escolher o que sentimos e concluímos ser justo.

Platão diz, na mesma República, que a alma é tripartida, e reitera no Fedro: semelhante a uma carruagem, em que o cocheiro é nossa parte racional, comandando os dois cavalos: o irascível (a força que movimenta) e os apetites (o desejo). O homem justo é aquele que tem a direção, velocidade e sentido da carruagem EM PAZ consigo mesmo. Ou seja, quando desejo e movimento de ação “entendem” a lógica racional. E nesta lógica racional está sim entender as consequências dos nossos atos. Estas consequências implicam em como a sociedade nos responde.

Daí vem:

  • “Preciso manter minha empresa: meus funcionários estão sendo pagos para isso!” Entretanto, embora as ruas estejam vazias, vai dar uma passadinha no metrô ou nos terminais dos ônibus ou mesmo nas baldeações: LOTADO!!! Quando é possível distanciamento SE não abdicamos da força de trabalho dos funcionários? Enquanto não nos unirmos efetivamente contra o vírus, a coisa se prolonga e o tempo parado será maior!
  • “Essa vacina chinesa… ou esta do RNA.. Se demoram anos para fazer uma, vai confiar nesta que foi feita em um ano. Morro da infeção, mas não morro disso!” Entretanto, este é um grande motivo para nos orgulharmos da humanidade: juntos realmente somos melhores. A Ciência nos mostra, de novo nesta janela do tempo, o que há de melhor na tecnologia. E, nesta trilha, o poder da vacina em termos populacionais: construímos uma barreira, uma muralha para conter a transmissão do vírus: nossa maior arma contra ele. De novo, enquanto não nos unirmos efetivamente contra o vírus, a coisa se prolonga e o tempo parado será maior!!!

 

Este é o início da nossa reflexão, tentando colocar de lado a parte afetiva e desesperada desta fase. Nossa liberdade de escolha vem e virá do pensamento em grupo que somos, ou em termos individuais, como espécie.

… ou ainda, quando enfim entendemos e então sentimos que nossa maior liberdade de escolha coincide com o Bem como Ser na Natureza. E isso não está no terreno da moral (ser bonzinho ou ser do mal): está em aprender a evitar o soco na cara.

Escrito por

Cassia Suzuki

Médica oftalmologista, quase filósofa, mãe de 2 filhas e 2 cachorrinhas